sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Sobre a Lei Seca, os Transplantes e a Lei da Vida



Francisco Neto de Assis*

Artigo publicado em jornal do norte do país, com repercussão em outras regiões, relacionou o sucesso da Lei Seca com o processo de doação de órgãos. O artigo enfatiza a necessidade de o governo aplicar com rigor a Lei Seca, mas lamenta a falta de adoção de estratégias para compensar a diminuição de órgãos para transplantes, no caso fígado, por causa da comprovada redução de acidentes no trânsito.
No raciocínio do autor de “Lei seca e a conseqüência nos transplantes” a captação de órgãos está diretamente ligada ao numero de acidentes de trânsito. “Se após trinta dias da implementação da Lei Seca estamos comemorando a redução de acidentes e do número de mortes no transito, daqui a poucas semanas estaremos observando o aumento de mortes nas filas de espera por transplantes, óbitos que numa análise fria das estatísticas deveremos debitar do sucesso da Lei Seca”.
Adotando a mesma linha de raciocínio seria possível dizer que a médio prazo poderemos creditar ao sucesso da Lei Seca a eventual diminuição da lista de espera por transplante de fígado. Afinal de contas o álcool é o principal inimigo do fígado, em especial daqueles com hepatite viral, a principal causa de indicação de transplante hepático. Contudo, a epidemiologia dos transplantes não pode ser considerada de forma tão simplista.
O efeito de medidas legislativas sobre o trânsito e a conseqüente redução da mortalidade por esta causa na população já é bem conhecido. Foi fator decisivo na reversão da tendência de crescimento da mortalidade em países como Japão, Portugal, França, Canadá, Hungria e na Grã-Bretanha. Durante o primeiro Carnaval após a vigência do Código de Trânsito Brasileiro, que entrou em vigor em janeiro de 1998, ocorreu uma redução de 45% no número de acidentes em relação ao mesmo período de 1997. Em 1998 também entrou em vigor a Lei da Vida, que trata do processo doação-transplante de órgãos. De lá para cá o número de transplantes aumentou mais de 140%. Entre 2000 e 2006 o número de acidentes de trânsito com vítimas fatais variou muito pouco, de 20.049 para 19.752. No mesmo período o número de potenciais doadores de órgãos cresceu de 982 para 5.657. Uma análise mais acurada demonstra que o número de acidentes de trânsito nesse período não explica mais de 10% da variação no número de potenciais doadores.
A prevalência de doadores de órgãos não é mais a de vítimas de Traumatismo Crânio-Encefálico (TCE) em acidentes de trânsito. Um estudo da Secretaria de Saúde do Estado de S. Paulo, por exemplo, mostrou que, entre 2002 e 2006, de 1.677 doadores viáveis 47,6% foram vítimas de Acidente Vascular Cerebral (AVC), dos quais 40,1% de AVC Hemorrágico e 7,5% de AVC Isquêmico. As vítimas de TCE por acidentes de trânsito responderam por 39,2% das doações. Os demais doadores morreram por outras causas, entre elas tumor cerebral, choque anafilático e asfixia.
Vincular a Lei Seca com o número de doadores é desviar os refletores para o lado errado, deixando no escuro a questão fundamental que embota o sucesso da Lei da Vida: a sub-notificação de possíveis doadores como conseqüência de um erro de gestão da apreciável estrutura para busca de órgãos para transplante, representada pelas 526 Comissões Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes, distribuídas por todas as regiões do país.
*Presidente da ADOTE – Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos

Dez anos de transplantes sob a Lei da Vida

RESUMO: Em janeiro de 1998 entrou em vigor a Lei 9.434/97 intitulada pelo seu relator, Senador Lúcio Alcântara, como Lei da Vida. Este trabalho apresenta alguns resultados produzidos e considerados relevantes nos dez primeiros anos de vigência da Lei da Vida:
a) foram realizados no Brasil mais de 100 mil transplantes, sendo, aproximadamente, 40 mil de órgãos sólidos (coração, pulmão, fígado, rim, pâncreas) e 60 mil de tecidos (exclusivamente córneas. Não foram computados medula óssea e outros);
b) 66,8% dos transplantes foram financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – 86% dos transplantes de órgãos e 54,1% dos de córneas;
c) quase 60% dos transplantes renais foram realizados com doador vivo, um dos índices mais elevados do mundo;
d) Embora tenham sido realizados cerca de 20 transplantes por dia a lista de espera cresceu a uma velocidade de pelo menos 10 inscrições por dia;
e) Mesmo tendo ocorrido um importante aumento na viabilização de possíveis doadores em potenciais doadores, o desperdício de órgãos, decorrente da falta de notificação do diagnóstico de morte encefálica para as Centrais de Transplante, ainda foi alto, ou seja, quase 60% dos possíveis doadores foram desperdiçados;
f) Depois da sub-notificação, a segunda causa de perda de doadores foi a Contra Indicação Médica (44,1% das causas de não doação) e a terceira foi a falta de consentimento da família, que variou entre 34,1 e 42,2% com média de 37,7%;
g) As estatísticas vitais do DATASUS permitiram estimar a disponibilidade de córneas para transplante entre 30 e 86 mil por ano;
h) a lista de espera por transplante de córnea poderia ser zerada nos próximos 12 meses se cada uma das 528 comissões intra-hospitalar de transplantes captasse pelo menos 26 doadores para atender a apreciável capacidade instalada de 29 bancos de olhos e 393 equipes transplantadoras autorizadas pelo SNT.
O fato de 66,8% dos transplantes receberem financiamento público sinaliza uma divisão de atribuições entre as esferas públicas e privadas no que se refere às fontes de remuneração para estes procedimentos de alta complexidade. Entretanto, contraria recomendação feita ao SNT por organizações sociais, para as quais os transplantes, pela sua natureza peculiar, deveriam ser totalmente financiados pelo poder público. Sugere-se que a maneira mais rápida de diminuir a elevada escassez de órgãos para transplantes no Brasil seria através do aumento da notificação de possíveis doadores, que poderia ser viabilizado através de medidas de natureza organizacional. Entre elas, estaria, em primeiro lugar, a criação de formas de reconhecimento e de incentivos para a efetiva atuação dos membros das CIHDOTT, que hoje são formadas quase exclusivamente por voluntários. Formas de incentivo à captação de órgãos e córneas também poderiam ser introduzidas no processo de contratualização dos hospitais, processo esse já implantado nos hospitais de ensino e em fase de implantação da rede de hospitais filantrópicos e privados prestadores de serviços ao SUS.
Francisco Neto de Assis - ADOTE
Fonte: www.adote.org.br

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